Profa. Dra. Adriana Thomazotti Claro
"É preciso levar em conta que o sujeito que aprende precisa dominar os recursos que são elaborados na sua realidade, para que seja possível dar significado, ou não, à aprendizagem".
Quando tratamos de educação, e do processo de ensino-aprendizagem, é preciso lembrar que se trata de algo muito maior que a simples indagação sobre as razões pela qual a criança não aprende.
É preciso levar em conta que o sujeito que aprende precisa dominar os recursos que são elaborados na sua realidade, para que seja possível dar significado, ou não, à aprendizagem. Conforme a realidade psicossocial do sujeito, baseada nas relações estabelecidas com os pais, com a família, com os primeiros cuidadores, cada um deverá configurar os significados que serão as bases para as relações envolvendo conhecimento e aprendizagem. A Psicanálise propicia uma possibilidade de busca de respostas através da escuta do aprendente, da percepção dos sentidos criados em sua subjetividade, o que compete positivamente para a compreensão dos mecanismos que envolvem a construção da subjetividade e a possibilidade de o sujeito se relacionar de maneira positiva, desejante frente à aprendizagem.
Neste contexto, pensar a educação significa perceber os processos de criação que ocorrem na interação do sujeito no seu meio cultural. E compreender tais processos implica perceber que estes que não se restringem a uma simples adaptação à cultura, mas que se estabelece na ação e transformação dos contextos culturais. A Educação tem suas normas, valores e condições alicerçadas na Cultura (não é possível pensar a Educação sem considerar que está integrada aos contextos culturais de sua criação), ao passo que as instituições escolares também são fruto da relação entre Cultura/Educação/Meio Social.
Para discutir a lógica de funcionamento das diferentes formas de educação formal, escolar, é preciso contextualizar o meio social em que o sujeito que aprende está inserido, para que se possa compreender o quanto essa dinâmica entre meio social e instituição escolar pode ser favorável ao processo de ensino-aprendizagem.
Tal situação se revela, por exemplo, no caso de um sujeito que pertença a um meio social mais aberto, em linhas gerais, terá, provavelmente, maior dificuldade de interação em uma instituição escolar mais conservadora, na qual tenha menores probabilidades de agir como está acostumado em seu meio, devendo se adaptar a normas e regras que talvez não façam sentido para sua percepção de mundo. A Psicanálise, ao abordar o funcionamento e a dinâmica da estrutura da personalidade, identificando os modos pelos quais o sujeito lida com seus impulsos e desejos (função do id) e com a própria percepção que tem de si mesmo (função egóica) permite lançar um olhar para as maneiras pelas quais o sujeito (criança, adolescente ou adulto) lida com seus objetos internos (como por exemplo, os valores que traz a partir da interação familiar, escolar, de seu grupo social), valorizando-os ou não.
A Psicanálise, portanto, contribui positivamente para a compreensão dos vínculos presentes nas relações do sujeito com as pessoas e situações com as quais interage. E é preciso destacar que a Psicanálise é muito mais que uma abordagem terapêutica: “Psicanálise é o nome: 1) de um procedimento para investigação de processos anímicos dificilmente acessíveis de outra maneira; 2) de um método de tratamento; 3) de visões teóricas” Freud, apud Laplanche, 2003, p.358)
E como indica Bacha (2003): A psicanálise não pode ser simplesmente alinhada como mais uma teoria do desenvolvimento e da aprendizagem na formação de professores como se apenas prolongasse a própria visão que a escola tem de si. (Bacha, 2003, p. 15). A principal atuação da psicanálise é oferecer um caminho através do qual se faz possível olhar para a educação a partir de novos pontos de vista, o que inclui questionar quem é o sujeito do saber nas situações de ensino-aprendizagem. Esse olhar vai além do sujeito cognoscente, percebendo-o também como o sujeito do inconsciente, desejante, característico da psicanálise.
Mais que a articulação entre pedagogia e psicanálise, trata-se de um espaço de transdisciplinaridade que, segundo o Dicionário online de Português, é a capacidade de “produzir uma interação entre disciplinas que, não somente se restringindo ao conteúdo disciplinar, propõe um diálogo entre campos do saber, buscando alcançar e alterar a percepção, cognição ou comportamento do sujeito”.
A compreensão do sujeito cognoscente e do sujeito desejante como uma única instância, caracteriza o que se pode denominar como o sujeito aprendente. O sujeito elabora seus saberes de modo que realiza a transformação de informações em conhecimento, e é nisto que se constitui a aprendizagem – um espaço simbólico no qual as diferenças permitem a criação a partir das novidades, em um jogo no qual a criatividade apresenta-se como essencial, permitindo ousar, arriscar, experimentar o novo e conhecer a si mesmo.
É neste cenário que a aprendizagem se apresenta como uma fonte de prazer, particularmente quando ocorre em um contexto de liberdade e confiança, onde a criatividade transparece no pensar e no falar, articulando as experiências e a subjetividade de cada um. Esse prazer se dá na relação entre o sujeito que ensina e o sujeito que aprende, e é a natureza dessa relação, o quanto se investe nestas possibilidades criativas, que possibilita o desenvolvimento da aprendizagem.
Por outro lado, se houver precariedade na estimulação, esse jogo prazeroso se perde na impossibilidade de se expressar o pensamento em falas, ações, criações, o que pode induzir a dificuldades para aprender.
É importante considerar a aprendizagem como uma relação e, neste contexto, deve-se ter em mente que o sujeito depende do outro, seja esse outro igual ou rival: o sujeito projeta seus conteúdos, seus pensamentos, no intuito inconsciente de que correspondam a expectativas, em um processo que Freud identifica como construção do Eu ideal.
O Eu ideal é representado pelo que o Eu desejaria ser ou ter, e que se constitui em referência ao outro. E o sujeito busca moldar seu Eu à imagem e semelhança do Eu ideal, de modo que o “homem e o ser estão entregues um ao outro [...]. Pertencem um ao outro por mútua destinação ou remissão. Sem o ser [...] afastado do ser o homem não desdobra essência e vive no desenraizamento.” (BICCA, 1999, p. 164). Esse processo é importante porque permite ao sujeito, a partir do que o outro representa para si, construir sua percepção de identidade como uma forma de dependência “quase” narcísica para ser feliz, pois, “o indivíduo tem de fato uma dupla existência, como um fim em si mesmo e como um elo de uma corrente, à qual serve contra – ou, de todo modo, sem – a sua vontade.” (FREUD, 2010, p. 20-21).
O investimento do outro, a relação com o outro são essenciais para se organizar um cenário no qual a criança possa se sentir segura, desejada, amada, de modo a desenvolver o desejo pela aprendizagem – a ausência de investimento está relacionada à ausência de desejo, o que conduz a uma aprendizagem que não se apresenta como significativa para o sujeito. Uma aprendizagem que não se apresente como significativa não é algo indiferente: a aprendizagem leva a transformações no comportamento do sujeito, em uma combinação complexa de intencionalidade e vontade que se apresenta na melhor forma quando se dá em um contexto sócio-afetivo, ou seja, quando há o vínculo entre aprendente e ensinante. A relação entre o sujeito que ensina e o sujeito que aprende é uma relação que se estabelece entre dois sujeitos que compartilham, além de conhecimentos, um espaço de intersubjetividade.
Mais importante que o conteúdo a ser ensinado, é preciso considerar o molde relacional que se imprime na subjetividade do sujeito que aprende, e essa subjetividade pode ser marcada pela alegria ou pela frustração. Os primeiros cuidadores, geralmente os pais, e em sequência os professores, são os primeiros sujeitos que desempenham o papel de ensinar, sendo necessário construir relações que propiciem espaços e tempos para aprendizagem, em processos que se inscrevem na autoria do pensamento.
É a partir da subjetividade que se coloca na relação entre ensinantes e aprendentes que se colocam as possibilidades de pensar, sentir e criar mais ou menos livres, e que se estrutura o desejo de saber, a demanda do conhecimento, envolvendo a subjetividade do sujeito que aprende, mas principalmente se constitui na relação do aprendente com seu par dialético, o ensinante.
Neste processo, é possível minimizar as dificuldades do ser cognoscente, o que pode acontecer a partir da facilitação e da descoberta do gozo de aprender, sem repressão nesse processo. A contribuição da Psicanálise se revela ao oferecer a escuta qualificada para identificar a origem das dificuldades ou transtornos, para além do imediatamente aparente, na possibilidade de favorecer os espaços de autoria de pensamento, de protagonismo na própria subjetividade.
O olhar que a abordagem psicanalítica propicia considerar as relações familiares, os elementos principais da formação deste aprendente, e permite que essa ação não se limite à criança (ou adolescente, ou adulto) atendida, mas envolva a família, ou cuidadores no processo, sendo possível, neste jogo, facilitar as relações de aprendizagem, o que permite perceber como o conhecimento é elaborado, transmitido e criado, favorecendo o desenvolvimento de comportamentos comprometidos com o processo, por parte dos ensinantes/aprendentes envolvidos.
Ao assumir os papéis de autores de seus pensamentos e aprendizagens, os sujeitos também assumem responsabilidades, pois não se limitam à repetição de ideias, conceitos, mas se tornam produtores dos saberes que estão presentes no seu cotidiano. Aprender é um processo prazeroso e exercitar a inteligência pela aprendizagem é uma conquista, lançando luz sobre as potencialidades do sujeito que, ao conquistar a autonomia sobre seus próprios processos, descobre o mundo, a cultura e passa a desejar algo que não sabe o que, mas que o incita ao movimento, à busca por esses saberes que dão sentido à existência.
E sendo a escola o espaço privilegiado de criação e socialização de saberes, estando presente na interação entre aprendizagem, conhecimento e educação, é preciso que também a escola se comprometa com a promoção do prazer da busca pelo conhecimento. Se há problemas no relacionamento (e no estabelecimento de vínculos) entre pais/filhos, educadores/alunos, ensinantes/aprendentes, enfim, se não há troca afetiva, o desejo do aprendente em conhecer, em buscar soluções, em aprender é prejudicado. O olhar da Psicanálise permite se debruçar sobre as relações entre ensinantes e aprendentes, ressignificando os vínculos e as interações.
Considerações Finais
A Psicanálise pode desempenhar um papel essencial na compreensão dos processos interrelacionados aos problemas de aprendizagem e dificuldades na Educação. A partir do olhar pautado na psicanálise é possível criar uma possibilidade de práxis, de ação, no sentido de atuar na transformação das relações e suas práticas, de modo que se propicie melhores condições de aprendizagem, revertendo quadros de desadaptação aos processos de busca de conhecimento, criando novas respostas para os problemas educacionais. A transdisciplinaridade é o conceito chave para esse processo. Referências Bibliográficas BICCA, Luiz. O mesmo e os outros. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999. BOSSA, Nadia A. A psicopedagogia no Brasil: contribuições a partir da prática. Porto Alegre: Artmed, 2007. FERENCZI, S. A adaptação da família à criança. In S. Ferenczi, Psicanálise IV. (A. Cabral, trad., pp. 1-15). São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1928), 2011 FORBES, Jorge. Eu é um outro. In Revista HSM, Edição 145, disponível em: https://www.revistahsm.com.br/post/eu-e-um-outro FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos. (1914-1916), obras completas volume 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. LAPLANCHE, J. Contracorrente. In GREEN, A. (Org.) Psicanálise Contemporânea: Revista Francesa de Psicanálise: Número especial )pp. 357-370). Rio de Janeiro: Imago, 2003. Transdiciplinaridade – In Dicionario Online de Português, disponível em: https://www.dicio.com.br/transdisciplinar/ Kupfer, M.C. (2001). Limites e alcances de uma aproximação entre psicanálise e educação. In: Kupfer, M.C. Educação para o futuro: Psicanálise e Educação (2ª. ed). São Paulo: Escuta.
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